A combinação de isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19, uma minissérie de sucesso estrondoso na Netflix e um cenário competitivo bem estabelecido fizeram com que um jogo centenário de tabuleiro ganhasse espaço na internet e se misturasse ao universo dos videogames e esportes eletrônicos. Estamos falando do xadrez, é claro.
Pode parecer que foi há muito mais tempo, mas não tem um ano que a Netflix lançou O Gambito da Rainha. Em menos de um mês, a produção conquistou 62 milhões de espectadores que passaram a acompanhar a pressão, os vícios e os amores de Beth Harmon, uma enxadrista fictícia interpretada por Anna Taylor-Joy. A carga dramática, as boas atuações e a produção impecável fizeram com que várias pessoas que nunca se interessaram pelo xadrez se apaixonassem pelo jogo.
Nas semanas após a estreia da minissérie, o Chess.com, uma das principais plataformas de xadrez online, ganhou cerca 100 mil novos usuários por dia – crescimento de 500% se comparado ao resto de 2020. O recorde anterior, não por coincidência, tinha sido no mês de março, início do isolamento social em boa parte do mundo, quando haviam 378 mil novos jogadores interessados em xadrez na plataforma.
Sedentos por ver os grandes jogadores em ação e sem poder sair de casa, o público foi para a Twitch, conhecida plataforma de streaming de games, para assistir partidas de xadrez. Criadores de conteúdo não demoraram a embarcar na moda e, em pouco tempo, os streamers tomaram conta da internet.
O xadrez teve nada menos que 21 milhões de horas assistidas somente em fevereiro, um crescimento de 2000% em relação ao mesmo mês do ano anterior. Para efeito de comparação, os principais games da Twitch, GTA 5 foram assistidos durante 144 milhões e 135 milhões de horas, respectivamente.
Com tudo isso, quem era experiente no xadrez (e já apostava no nicho de público) se surpreendeu e aproveitou a virtualização do jogo.
Quando um esporte se torna um eSport
Vários dos jogadores de xadrez offline cresceram muito neste boom online. Dentre eles, Hikaru Nakamura, Grão-Mestre pentacampeão norte-americano. Em maio de 2020, Nakamura foi técnico e um dos comentaristas do PogChamps, torneio organizado pelo Chess.com, no qual streamers amadores e jogadores profissionais competiram entre si.
No final do ano, Hikaru entrou para o Team SoloMid (TSM), gigante dos eSports. Na equipe há outras dezenas de jogadores divididos entre Fortnite, Rainbow Six, Apex Legends, Valorant e PUBG, mas ele é o único da organização a representar os tabuleiros virtuais de xadrez.
Mesmo estando no topo das classificações mundiais, Nakamura não foi o pioneiro. Uma semana antes, a canadense Qiyu Zhou assinou com o Counter Logic Gaming (CLG). Qiyu é uma Grã-Mestra que faz transmissões na Twitch sob o pseudônimo de akaNemsko, hoje com mais de 200 mil inscritos.
Outras que ganharam os holofotes na sequência foram as irmãs Botez, Alexandra e Andrea, do canal BotezLive – que já passou de 800 mil inscritos. No fim de dezembro, elas entraram para o time Envy, de CS: GO e Call of Duty, e menos de um mês depois comandaram o torneio BlockChamps (também do Chess.com), que seria como um PogChamps exclusivo a jogadores de Minecraft.
Não demorou para um brasileiro fazer o mesmo: Krikor Mekhitarian, um dos 14 Grão-Mestres brasileiros, ingressou no time FURIA, também de eSports, em dezembro.
“O xadrez tem muito a ganhar ao se envolver com os outros eSports”, conta em entrevista ao Bitniks. “Por mais que o xadrez tenha uma esfera mais tradicional, os eSports têm uma estrutura muito maior”, diz. Para ele, isso também resulta em mais apoio. Afinal, esta é uma indústria bilionária.
Mekhitarian atualmente segura o terceiro lugar no ranking nacional do Chess.com, plataforma na qual é diretor de conteúdo. Ele conta que o xadrez foi responsável por trazer fãs de jogos como League of Legends e Counter Strike, que podiam até ter interesse pelo xadrez, mas não sabiam disso.
Da mesma forma que um jogador de xadrez não entende táticas para desarmar uma bomba em Counter Strike, jogadores de videogame não sabem sobre armadilhas, aberturas ou en passant. “Muita gente fica intimidada de acompanhar o xadrez acreditando que as regras são complicadas. Para você entender, precisa aprender sobre cada peça. Não é só bater o olho”, opina.
Contudo, Mekhitarian afirma que uma parcela considerável de seu público entra nas transmissões ao vivo pela diversão de acompanhar a competição, não por dominar no jogo. “Muitos jogadores de LoL e CS, que conhecem pouco de xadrez, mas se interessam, aparecem nas lives. A pessoa curte a comunidade, fica por lá e, de repente, começa a aprender o básico”, comenta.
Do ano passado para cá, os números de Krikor quintuplicaram. Com mais de 85 mil seguidores, ele realiza cinco transmissões por dia na Twitch. No YouTube, sua “segunda casa”, teve um pico de inscritos e de visualizações, principalmente após pronunciar-se sobre o caso de Felipe Neto, que trapaceou na plataforma Chess.com
À parte de comentários dos espectadores na torcida, o engajamento é combustível para o Grão-Mestre. “O pessoal está lá não só para ver o que você está fazendo/falando, mas para levantar outros assuntos. Me sinto muito à vontade”, relata.
Mekhitarian não se limita ao tabuleiro digital. Poucos dias após a entrevista, o jogador embarcou para a Rússia rumo à disputa da Copa do Mundo de Xadrez. Ele não conseguiu chegar às finais, sendo eliminado por Shakkriyar Mamediarov, jogador do Azerbaijão. Mas aproveitou o crescimento das transmissões para aproveitar a oportunidade e comentar jogos do campeonato pela internet.
Como o xadrez foi impulsionado pela pandemia
Além de O Gambito da Rainha, a pandemia ajudou muito o jogo crescer na internet. “O xadrez estava preparado para uma pandemia há mais de 20 anos”, diz Adriano Caldeira, mestre pela Federação Internacional de Xadrez (FIDE). Há décadas trabalhando com xadrez, Caldeira lembra como a plataforma Internet Chess Club foi a primeira grande forma de disputar jogos pela internet, em um longínquo 1995.
“Há entre 30 a 50 mil jogadores cadastrados na Confederação Brasileira de Xadrez, mas o público atual é muito maior. Hoje é comum vermos grupos em redes sociais com 30 mil capivaras [como é conhecido o jogador iniciante]”, comenta Caldeira.
Um beneficiado pelo genuíno interesse do público foi o estadunidense Levy Rozman, com seu canal GothamChess. Na estreia de O Gambito da Rainha, Gotham tinha 100 mil inscritos e poucos vídeos no YouTube,. Hoje, 10 meses depois, ele tem um dos maiores canais de xadrez da plataforma com 1,08 milhão de fãs ávidos.
O atual “rei” da Twitch é Antonio Radić, do canal agadmator, com 1,14 milhão de inscritos. Detalhe: Antonio faz vídeos desde 2007.
Nesse boom, Mekhitarian chegou até a comentar jogos em inglês pelo canal de Hikaru. Por ser brasileiro, a barreira de idioma evita que ele faça muitas colaborações com gringos. “Tem canais, mesmo que não sejam americanos, que resolvem falar em inglês. Cheguei a fazer lives no idioma, mas não achei que fosse o caminho certo; sempre preferi manter o português”, explica.
Mas seria o xadrez virtual o futuro do jogo? Adriano Caldeira acredita que não e que, assim como tantas atividades, o xadrez se beneficia com contatos sociais. “O jogador participa do torneio com amigos, depois vai comer uma pizza, organiza viagens junto para outros eventos (…) Aqui em São Paulo você vê um menino que mora em uma comunidade da Zona Leste tomar um café com diretor do Itaú, que é o presidente do clube de xadrez, por exemplo.”
Para Caldeira, no entanto, o online também vai continuar firme e forte. “Vamos sofrer mudanças culturais. O clube Paineiras [do Morumbi, em São Paulo] agora tem espaço fixo para o aluno fazer aulas online, independente da pandemia. É uma decisão permanente”, exemplifica.
Mekhitarian acredita que “o xadrez online não tenta substituir o tradicional, é uma soma”. Fato é que o Brasil é um dos que mais organiza eventos da Federação Mundial de Xadrez, sendo que para boa parte deles você não precisa frequentar um clube.