Bitniks

Aya e seu lindo Black Power

Opinião

Abro o Aya pela segunda vez. “Aya e seu lindo black power” é o nome do jogo, pra ser mais exato. Antes de começar novamente a jogatina, acesso o menu de opções. Sou libriano, então gosto de ter várias escolhas. Sofro, mais gosto. Que legal! Me surpreendo com o menu. O pessoal programou níveis de dificuldade! Quem vê um jogo pronto, não tem ideia do quanto dá trabalho. Lembro-me da última conversa com Marcos. Alguns dias antes de lançar Aya para o mundo, ele me fez uma ligação.

Há algum tempo atrás, o próprio Marcos havia me alertado de algo que fazemos costumeiramente: olhar a agenda antes de conversar. Não sei, de fato, quando ou como pegamos este costume. Sábias palavras a dele.

Era pra ser um papo de vinte minutos. Como de praxe, durou mais de duas horas. Falamos sobre a vida, contamos as novidades. Recebi ótimos conselhos, pois há 1 mês havia iniciado o experimento de uma dieta vegetariana. 

Aliás, eis uma breve história. Soube que Marcos e Raquel não comiam carnes desde quando conheci o casal. O encontro aconteceu numa atividade na Usp, mas o papo rolou mesmo no bar. Chegando lá, sentamos e pedimos uma cerveja. Logo no momento em que pedimos os lanches, eles nos disseram sobre o veganismo. Senti um certo constrangimento quando minha porção de calabresa chegou. Não por causa deles. Queridos desde sempre, Marcos e Raquel nos contaram um pouco sobre sua escolha. Desde então, nos tornamos amigos.

Retomemos nosso encontro com Aya. Ela estava ali, pronta para ser jogada. Pronta para jogar conosco também. Sempre me lembro da tese de nossa amiga, Arlete dos Santos Petry. Ela defende que, quando jogamos, também nos tornamos coautores da obra. É meio que escrever um caminho único, seu e do jogo. Como desenvolvedor, ver vocês jogando durante sessões de playteste pode fazer com que os jogos que criamos por aqui mudem bastante. Já enquanto jogador, acredito que também posso ser afetado pela interação com o jogo. Ao apertar a tecla de início, é necessário aceitar as regras colocadas pelo designer, aprender e seguir em frente. Nas palavras de Huizinga, ou o jogador aceita as regras e joga, ou as burla, tornando-se a odiada figura do desmancha-prazeres.

É difícil curtirmos trapaças em jogos, né?

Beleza, eu aceito jogar Aya. E também aceito ser jogado por ela. Logo ao abrir o jogo, percebo que ele está em português! Parece estranho, mas é muito comum abrirmos jogos de desenvolvedores brasileiros e trombarmos com a língua estrangeira. O inglês é a base utilizada pela indústria massificada de games. Quando um jogo é publicado nas plataformas mais robustas, como a Steam, GameJolt e lojas virtuais de consoles como PlayStation Store, Nintendo eShop e Microsoft Xbox Live; o jogo geralmente é disponibilizado mundialmente. Além disso, os trâmites com os maiores investidores também ocorre com pessoas fora do Brasil. Sabe, vejo com frequência nos grupos de uma certa empresa de games, a galera reclamando sobre a falta de localização. Enquanto cobram uma fortuna nas cópias de seus jogos, sequer há uma estimativa de que os títulos serão localizados. E olha, não acho a cobrança errada não. Na real, são desses pequenos incômodos que começam a surgir práticas de insurgência, de construção de espaços mais plurais, mais inclusivos, mais coletivos. Muita gente chama isso de prática decolonial. Você lembra do Bomba Patch?

Começo o jogo. Uma série de ilustrações é iniciada. Em uma das primeiras imagens, uma mulher preta de óculos olha para um quadro ou espelho. Ela parece ver uma lembrança ou um anseio. Nele, aparecem três pessoas. A primeira é a de um rapaz preto de pele clara, careca e com cavanhaque. Ele parece feliz e confortável. Trata-se de uma imagem muito semelhante a que Marcos usara por anos. Ao seu lado, a mesma mulher que observa a imagem o abraça. Ela possui o cabelo crespo. Pelo visto, dever ter realizado um corte freestyle ou um penteado com tranças há pouco tempo. Não posso deixar de relacionar sua imagem à Raquel Motta, parceira de Marcos na criação. Desde quando a conheci, pude vê-la com seu black power de diversas formas. Mais ao lado direito, uma terceira pessoa aparece. Trata-se da representação de uma mulher preta, vestida com roupas predominantemente verdes, um turbante da mesma cor na cabeça e um grande cabelo crespo. Ela parece olhar fixamente para as duas pessoas ao seu lado. Finalmente, compondo a imagem, vejo ao lado direito um quadro com o mapa do continente africano.

Zé Wilson manda muito bem nas ilustrações. Dá vontade de ficar viajando nelas. Junto ao Marcos e Raquel, ele forma um trio que se completa muito bem. Tipo aqueles power trios do metal, como o Krisiun.

Depois de um longo tempo, Aya está pronta. Posso ser a personagem que cuida de seus sonhos. Com os comandos direcionais, posso andar pros dois lados. A navegação do jogo é em duas dimensões, ou 2D. “Aya dorme e sua tiara, afaga, senhora do tempo”. Com uma poesia, o jogo ensina sobre seus objetivos. Na parte de cima, Aya parece dormir tranquila, exceto por uma coisa: seus sonhos estão sendo perturbados por monstros que parecem querer sugá-los.

Como uma boa guardiã, saio correndo em direção à um saco de sementes. No minigame, pego uma, duas, três, quatro delas. No centro da tela, aperto o botão de ação e planto uma de cada vez. Mais à direita, corro em busca do patuá, direciono o sol para cada semente, e as faço germinar. Pronto. Os monstros que assombram Aya vêm comer minhas plantinhas, e a deixam voltar a sonhar.

No momento em que é lançada, Aya torna-se uma das referências de representações pretas nos videogames. Aya é uma personagem feminina preta! Extrapolando a representação nas telas, tem algo mais importante: Aya é criada por pessoas pretas. Isso faz toda a diferença, pois, ao vermos pessoas como nós ocupando espaços, podemos também nos ver enquanto potências. Assim como nossos cabelos crespos, lutamos todos os dias contra esses monstrinhos que querem roubar os nossos sonhos. Estamos todos os dias florescendo. E não adianta dizer que não podemos habitar espaços como o desenvolvimento de games. Ou pior: ditar o como devemos fazer isso. Acertamos e erramos. Flertamos com a dita indústria dos games. E também produzimos jogos ao estilo artesanal. Somos profissionais, e também amadores. Amadores, no sentido de amar. E sim, misturamos amizades com trabalho, e dificilmente deixamos de extrapolar o tempo e o propósito da reunião, pois nos preocupamos em saber como o outro está. Esse é o jogo.

Potências pretas, periféricas e brasileiras nos videogames. Assim como Marcos, Raquel e Zé, existem vários outros grupos que lutam para aqui estar e aqui permanecer. Não nos leia como exemplo de superação. Assim como Sankofa, escrevemos o futuro a partir de nossa ancestralidade.

Viva a consciência negra! Viva o povo preto!