Com a chegada da pandemia de Covid-19, cientistas e autoridades ao redor do mundo determinaram medidas necessárias de isolamento social a fim de diminuir o contágio da doença. A partir daí, estudos de gênero se debruçaram sobre o que isso significaria para as mulheres e alertaram para o agravamento de casos de violência doméstica. Segundo especialistas, a preocupação se dá pelo fato delas conviverem mais tempo com seu agressor e, por isso, terem dificuldade de formalizar denúncias e buscar ajuda.
Em um relatório divulgado em abril de 2020, logo no início do surto, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) informou que o total de socorros prestados para mulheres no estado de São Paulo passou de 6.775 (em março de 2019) para 9.817 (em março de 2020).
A quantidade de feminicídios também subiu 46,2% e os atendimentos da Polícia Militar, 44,9%.
Outro dado alarmante foi do Rio Grande do Norte, que apresentou um aumento de 34,1% nos casos de lesão corporal dolosa (quando há intenção de se ferir) e de 54,3% nos de ameaças. No estado, as notificações de estupro e estupro de vulnerável dobraram — encerrando o mês com 40 casos no total.
Segundo dados do relatório Mulheres em Tempos de Pandemia, do Laboratório Think Olga, o percentual de violência sexual no Rio de Janeiro também subiu: foi para 65,5% em 2020, em relação aos 57,7% registrados em 2019.
De acordo com uma nova pesquisa do FBSP, Visível e Invisível – A vitimização de mulheres no Brasil, realizada pelo Datafolha e desta vez publicada em junho de 2021, uma a cada quatro mulheres foi vítima de violência física, psicológica ou sexual ao longo do último ano — entre as agressões físicas, houve oito casos a cada minuto e isso equivale a 17 milhões de mulheres ao redor do país.
Myrian Ravanelli, vice-presidente da comissão Mulher Advogada, da OAB São Paulo, explica:
Eu acredito que esses casos sejam subnotificados. Isso porque nós ainda não temos um cadastro único para analisarmos, de fato, o que está acontecendo. Neste período de isolamento, os pedidos de socorro ficaram mais dificultados, já que as vítimas estão o tempo todo com seu agressor. Hoje nossos marcadores são corpos daquelas que sofreram feminicídios e que chegam aos hospitais pedindo ajuda.
Os números evidenciaram que, no último ano, a violência teve maior prevalência entre mulheres pretas (28,3%) e pardas (24,6%).
Para Amanda Kamanchek, gerente de inovação do Think Olga, isso ocorre por causa da formação histórica do país, que não deu condições financeiras e sociais para a população negra após a escravização. “As mulheres negras são as que estão mais vulneráveis na sociedade, principalmente nesse cenário de pandemia”, afirma. “Elas ainda são a camada com menos renda da população e muitas estão em trabalhos precarizados e com poucos direitos trabalhistas, o que afeta diretamente na busca por ajuda”.
O lar não é um lugar seguro
O novo estudo da FBSP ressalta, ainda, que metade das violências experimentadas pelas mulheres no último ano ocorreu em casa (48,8%). Em sete a cada dez ocorrências, o autor é uma pessoa conhecida, principalmente companheiros (25,4%) ou ex-companheiros (18,1%). “Não é que a violência começou durante a pandemia, mas se intensificou com a convivência. Esse é um ciclo que geralmente começa com violência verbal ou psicológica e, em alguns casos, evolui para a violência física e até o feminicídio”, esclarece a psicóloga Raquel Brandão Martins de Araujo Younes.
Entre as vítimas, a dificuldade de garantir autonomia financeira é o fator mais destacado (25%) para explicar o aumento da violência. A maior convivência com o agressor foi citada por 21,8%, e dificuldade de procurar a polícia, por 9,2%. “Depender do parceiro pode deixá-las com medo do futuro e aumentar as inseguranças de não conseguirem sustento e moradia. Além disso, não ter independência financeira as deixam mais vulneráveis para manipulações e ameaças”, diz a especialista.
Políticas públicas insuficientes contra violência doméstica
Segundo a pesquisa do Laboratório Think Olga, é evidente que o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) não teve um bom desempenho no enfrentamento desse problema. Do valor disponível e aprovado de 120,4 milhões para a pasta de mulheres, o Ministério gastou apenas 35 milhões. Assim, o governo chegou ao final do ano deixando de gastar 70% do recurso autorizado para 2020.
As informações do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), checadas pelo Laboratório, afirmam que 75% da verba foi para o disque 180; 15% para a compra de alimentos para doação; 10% para a Casa da Mulher Brasileira, ONGs e instituições de ensino e 10% para municípios do Mato Grosso do Sul. Nesse sentido, nenhum recurso foi gasto com as mulheres para abrigo, atendimento psicológico, assistência social, transporte e apoio para saírem de casa.
“Gastar só 30% do orçamento mostra não só uma incapacidade do governo de atender mulheres que estão passando por uma situação agravada de violência, mas também como a política é a redução orçamentária para essa pasta. Não gastar é um plano de governo”, diz Amanda Kamanchek, gerente de inovação do Think Olga. “Existiam diretrizes apresentadas não só pela Organização das Nações Unidas (ONU), mas por outros países que estavam lidando com isso e elas foram ignoradas pelo ministério”.
Para Ravanelli, mais investimentos das autoridades trariam melhores possibilidades de acolhimento para as vítimas. “O ideal seria primeiro acolhê-la, aplicar medidas de proteção e depois começar as investigações. Mas hoje nós trabalhamos com poucas políticas públicas e, para fazer isso, precisamos de subsídios que não temos”, conta. “Muitas vezes, a mulher fica em uma casa de passagem e tem um tempo de permanência específico. O ideal seria prestar um suporte financeiro e uma recolocação no mercado de trabalho. Também é preciso pensar em assistência de cunho psicológico, jurídico e familiar para que ela tenha condições de prosseguir com sua vida”.
Quebrando o ciclo de violência doméstica
Segundo o Art. 5º da Lei Maria da Penha, violência contra a mulher é “qualquer ação ou omissão baseada no gênero, que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. Ainda assim, nem sempre as denúncias chegam às delegacias.
Younes explica que isso se dá devido ao medo da impunidade e do estigma social. Além disso, há uma dificuldade da mulher em perceber que está em uma relação abusiva. “Tudo começa de forma tão sutil que, em diversos casos, a mulher só se dá conta quando está em situação tão complexa que não sabe nem por onde começar a sair dela”. Identificada a violência, a psicóloga aponta que é muito importante que essa mulher não esteja sozinha, já que algumas passam por um período de negação após a identificação — que pode vir como sinal de proteção por ser difícil se reconhecer como vítima desse problema.
Ainda assim, ela pode realizar uma denúncia e pedir auxílio sempre que se sentir ameaçada. “Infelizmente ainda trabalhamos com o tabu da violência psicológica, mas ela também causa danos emocionais e prejudica o desenvolvimento da vítima”, diz Ravanelli. Exemplos disso são: controle de comportamento, emoções e crenças, além de ameaças, constrangimento, manipulação, insulto e isolamento.
Serviços de Atendimento contra violência à Mulher
— Disque 180: o telefone é a Central de Atendimento à Mulher. Pode ser acessada 24 horas, de forma gratuita e de qualquer telefone;
— Aplicativo SOS Mulher: disponível para qualquer dispositivo, o app tem um botão de ajuda que localiza e envia suas informações à viatura mais próxima. Podem se cadastrar somente pessoas com medidas protetivas expedidas pela Tribunal de Justiça de São Paulo.
— Delegacia da Mulher: todo estado possui uma delegacia especializada da mulher, que deverá atendê-la, mas qualquer delegacia comum pode atender mulheres em caso de violência doméstica;
— Ministério Público: a instituição recebe e encaminha mulheres vítimas de violência doméstica para os serviços necessários.
— Em São Paulo, as vítimas de violência doméstica podem fazer a denúncia online na Delegacia Eletrônica da Polícia Civil. Injúria, insultos e calúnias podem ser reportados sem a necessidade de sair de casa.
— Aplicativo PenhaS: o app fornece informações sobre direitos das mulheres, notícias sobre o assunto, um mapa sobre delegacias de todo o Brasil, um botão de pânico que aciona até cinco contatos em casos de urgência e um botão de produção de provas, que ativa gravação de áudio criando a oportunidade de produzir provas para a justiça.
— Aplicativo Magalu: lá tem um botão para denunciar a violência contra a mulher, que direciona a vítima ao disque 180.
— CRAM: o Centro de Referência de Atendimento à Mulher é um espaço destinado a prestar acolhimento e atendimento humanizado às mulheres em situação de violência, proporcionando atendimento psicológico e social, orientação e encaminhamentos jurídicos.
O que acontece ao formalizar a denúncia?
A advogada conta que a palavra da vítima nunca deve ser questionada. No entanto, ainda há a necessidade de algum tipo de prova contra o agressor. Ela pode vir como um testemunho, mensagens, prints de tela de celular, entre outras. A partir daí, uma investigação será aberta e ocorrerá uma tipificação do crime para determinar a responsabilização. “O agressor poderá ser preso em casos de flagrante e nos descumprimento de medidas protetivas. Quando é o caso do feminicídio, ele irá para um julgamento com júri popular e tem um agravante na pena pelo fato dele ter cometido um crime em razão do gênero”, conta.
Quando a mulher pode pedir medidas protetivas?
As medidas protetivas são mecanismos criados pela lei para prevenir e coibir a violência. Com elas, o agressor pode ser afastado do lar e de qualquer convivência com a vítima. Há também a fixação de um limite máximo de distância entre os dois e a proibição de qualquer tipo de contato. Outra medida que pode ser aplicada pelo juiz em proteção à mulher vítima de violência é a obrigação do pagamento de pensão alimentícia provisória. A mulher pode solicitar essas medidas sempre que ela estiver na iminência de sofrer violência ou mesmo quando elas já passaram por isso. “A partir dos relatos da vítima na delegacia, a instituição já pode fazer uma triagem para entender quais tipos de medidas precisam ser tomadas”, afirma Ravanelli.