A pandemia de Covid-19 se instalou nas nossas vidas e mudou vários aspectos de nosso cotidiano. Alguns processos se intensificaram: o trabalho remoto, as entregas e o e-commerce. Em outros, porém, as mudanças foram bastante radicais. A saúde é um bom exemplo disso: há dois anos, as alternativas para conseguir um atendimento remoto — a chamada telemedicina — eram bem mais escassas do que as disponíveis hoje. Vários planos de saúde, clínicas e hospitais se adaptaram à nova realidade e oferecem consultas por vídeo — e os médicos precisaram acompanhar.
Contratada por um plano de saúde, a médica de família Lívia Guedes atendia em uma clínica na capital paulista até março de 2020, quando os agendamentos foram cancelados e os médicos, mandados para casa. “Trabalhar em casa era uma coisa que nunca tinha passado pela minha cabeça, porque eu não achava que era possível fazer isso.” Um serviço de telemedicina foi montado para dar conta de orientação remota aos pacientes — afinal, havia o temor de que hospitais e consultórios se tornassem grandes pontos de disseminação do coronavírus.
Guedes conta que o atendimento no início foi bastante improvisado. O sistema de prontuários continuava o mesmo, agora com acesso dos computadores das casas dos médicos. Para solicitar atendimento, o paciente ligava para um número telefônico, que colocava o cliente em uma fila virtual de um sistema CRM. Depois, quando chegava a vez dele, um médico entrava em contato por WhatsApp e fazia uma chamada de vídeo por lá mesmo. “A gente teve que construir uma telemedicina mal-regulamentada do zero. A gente foi arrumando o carro com ele andando, mas funcionou.”
Algumas empresas estão de olho justamente nesse filão: oferecer sistemas médicos que tenham a telemedicina integrada. “Naquele momento [em que a telemedicina foi regulamentada durante a pandemia], nós já tínhamos aquela solução pronta, rodando em outros países. Trabalhamos todas as horas possíveis no dia para customizar e liberar isso para o Brasil, e fomos uma das primeiras a lançar”, diz Cadu Lopes, CEO da Doctoralia no Brasil, empresa polonesa de soluções médicas. “A gente está chegando a 1 milhão de consultas, que provavelmente são pessoas que deixaram de ir às suas unidades para pegar uma informação, uma orientação, uma receita.”
“A realidade é que a telemedicina foi implementada [no Brasil] há anos, e obteve uma aceleração do reconhecimento e aprovação do conselho de medicina devido à pandemia de Covid-19”, diz Caio Soares, diretor de medicina da Teladoc Brasil, outra concorrente do mercado de telemedicina. “A pandemia acelerou a necessidade da transformação digital em todos os mercados, e na saúde não foi diferente.”
Com o tempo, as plataformas do plano de saúde onde Guedes trabalhava foram se integrando. A médica também retornou à clínica; o plano de saúde voltou a oferecer consultas presenciais e manteve uma opção de teleatendimento agendado. Ela passou a atender do consultório em alguns dias e de casa em outros. Guedes diz que a experiência foi positiva — até hoje ela atende remotamente, mas em outro plano de saúde, agora em Campinas (SP).
“Muita gente dizia que os médicos iam fazer coisa errada, que não teriam como avaliar o paciente e iam achar que ele estava melhor do que na realidade e isso ia dar problema. Isso depende de o profissional conhecer as limitações da telemedicina”, comenta a médica. “Aconteceu mais de uma vez de eu ter que convencer um paciente que eu não tinha como resolver o problema dele. Em alguns casos, se eu não tenho como examinar, não tenho como dizer que está tudo bem.” Por outro lado, casos mais leves e quadros típicos, como infecção urinária, puderam ser resolvidos remotamente. “Eu consegui até fazer paciente tirar foto de garganta melhor que muita foto de garganta profissional.”
As soluções e os problemas do virtual
Toda empresa de tecnologia bate na tecla de que seus produtos e soluções vão trazer mais eficiência e contornar antigos problemas. Não é diferente com a Doctoralia e a Teladoc Health, ouvidas pelo Bitniks.
“Nós acreditamos que vai existir uma mudança na forma de trabalhar destes médicos, em como eles dividem a agenda entre primeira consulta e retorno. Eles vão poder concentrar uma parte do dia para fazer uma sequência de atendimentos com qualidade, mas sem perder tempo com as fricções”, diz Lopes, da Doctoralia. “Na medida que você aumenta a produtividade desses profissionais e entrega o atendimento de maneira mais abrangente, pode ter uma redução de custos dos planos de saúde e da cadeia do SUS.” Soares, da Teladoc, vai pelo mesmo caminho. “As healthtechs, além de fomentar o mercado com novas soluções, tem trazido muitos benefícios e ganhos de eficiência para um setor extremamente importante como o da saúde.”
Mas nem tudo é perfeito. E novas fricções podem aparecer na telemedicina. Guedes conta que, no plano de saúde onde trabalhava anteriormente, havia duas agendas distintas, uma para consultas presenciais e outra para virtuais. Alguns pacientes confundiam as duas agendas na hora de reservar um horário e iam até a unidade médica sendo que a consulta era virtual, enquanto outros selecionavam um horário no consultório e tentavam o acesso pelo computador. “Já aconteceu, mas a gente se vira (risos).” No convênio onde ela atende atualmente, não há distinção entre agendas. A médica fica direto no consultório e o paciente não precisa optar antecipadamente por um dos dois tipos de consulta: ele agenda um horário e pode tanto ir à unidade quanto usar a telemedicina.
A telemedicina resolve o problema do transporte do paciente até o consultório, mas isso não significa que os atrasos são coisa do passado. Eles continuam acontecendo por outros motivos — e com outras consequências. “[Se] um paciente chega 15 minutos atrasado no consultório, você vai atender outro paciente, chama aquele quando der um minutinho. Ele está na unidade”, explica a médica. “Na telemedicina não tem como chamar aquele paciente de volta. Se eu marquei às 8h, às 8h15 ele não apareceu e às 8h20 eu tenho outra consulta, eu encerro a dele e aí, paciência. Na das 8h20 eu também não posso entrar atrasada, porque aí o paciente acha que eu não compareci e fica aquela confusão, porque a gente não consegue conversar para resolver.”
Também há as dificuldades dos pacientes com a própria plataforma e o ambiente, o que cria situações no mínimo inusitadas. “Nem todo paciente entende que apesar de ser uma telechamada, tem que ser um ambiente de consulta. Eu tinha paciente que não acendia a luz, paciente com cachorro berrando, paciente que atendia a gente no mercado”, conta a médica.
Guedes também diz que não sentiu grande diferença em termos de produtividade, outra promessa das empresas. “Nosso tempo de consulta é o mesmo. Na maioria dos lugares, ele é de 20 minutos. Não acho que eu produzo mais ou menos hoje no modelo de agenda virtual do que no presencial.”
A médica conta que, nos primeiros meses, quando o serviço ainda era novidade, virou a “maníaca do grupo de WhatsApp”, nas palavras dela, porque ficava muito ligada nos grupos para tentar ajudar colegas quando eles tinham problemas com as plataformas. Ela também relata que a comunicação no virtual é um pouco mais difícil que no presencial. “O virtual desgasta muito mais, eu tenho que falar mais devagar e repetir para me fazer entender. No presencial eu não sinto tanto essa necessidade.”
O futuro da medicina é na telinha
Apesar dos percalços, Guedes considera a experiência positiva e relata que seus colegas também gostaram da telemedicina. A praticidade é um dos pontos mencionados. “Tinha paciente que chegava atrasado porque, a duas quadras da unidade, pegou um trânsito bizarro. Aí atrasava toda a agenda, virava aquele caos, sendo que às vezes era para pegar um papel. Dá até pena.”
Outra vantagem é que fica mais fácil para acompanhar pacientes que provavelmente teriam dificuldades de seguir se tratando. “Pacientes idosos, que não tinham quem acompanhasse, ou sofriam de problemas como Alzheimer, a gente conseguia acompanhar”, conta. “Eu atendi paciente do Maranhão, do Amazonas. Eu tinha uma paciente que passava comigo todo mês que era de Maricá. Ela vinculou bem comigo e a gente foi fazendo por telemedicina durante meses.”
A telemedicina está ‘uberizando’ os médicos?
A flexibilidade para trabalhar também é uma das vantagens mencionadas. Guedes conta que colegas que foram fazer doutorado no exterior ou que estavam com filhos pequenos em casa puderam atender de casa, com todas as facilidades que isso traz. Além disso, o trabalho dos médicos já é bastante flexível: os profissionais contratados pela CLT são uma minoria na classe. Por isso, a telemedicina é mais uma opção de trabalho. “Se eu quiser trabalhar umas horas a mais, porque eu preciso de dinheiro, porque eu estou a fim, eu posso pegar quatro, oito horas de telemedicina por semana. Nem precisa ser fixo, posso pegar um plantão.”
É impossível falar de transformações no trabalho e não pensar no que aconteceu nos últimos anos no setor de transportes e de entregas com a popularização da Uber e do iFood.
Para Rafael Grohmann, coordenador no Brasil do projeto Fairwork, vinculado à Universidade de Oxford, a chamada plataformização do trabalho é multidimensional e pode tomar formas diferentes para as diversas categorias profissionais, já que existem múltiplas empresas competindo. Mesmo assim, os médicos não estão isentos deste processo. “Essa plataformização tende à generalização.”
O fato de os médicos já serem uma categoria com muita flexibilidade nas formas de contratação prepara o terreno para mudanças nesse sentido. “A plataformização é uma radicalização de processos existentes, como as mudanças na CLT, a reforma trabalhista. A flexibilização do trabalho que vem de décadas é como uma antessala para o fenômeno.”
Grohmann também diz não acreditar que só a tecnologia vai resolver a questão da falta de médicos porque há desigualdades no acesso à tecnologia. O pesquisador lembra das aulas online durante a pandemia, que muitos alunos não puderam acompanhar por não ter como entrar na internet. Ele também conta que entregadores de aplicativos não conseguem trabalhar em alguns bairros de grandes metrópoles por falta de cobertura de sinal.
Lopes, da Doctoralia, acredita que o setor médico vai incorporar as avaliações, com os profissionais recebendo notas — como já acontece com motoristas, restaurantes e entregadores. “Pode ser que haja uma procura por médicos que tenham um bom desempenho, do ponto de vista de atração, posicionamento e representatividade. Essa economia tem caminhado para esse lado.” Mesmo assim, o executivo diz que a medicina não deve ser vista como um produto e que a mercantilização do setor deve ser evitada a todo custo. “A área de saúde é diferenciada. Tem suas regulações e responsabilidade. Nós andamos muito alinhados com as orientações dos conselhos e do Ministério da Saúde.”
Soares, da Teladoc Health, traça paralelos com outras transformações digitais. “A telemedicina se parece mais com o Waze que com o Uber. Diria que estamos vivendo uma Wazização e não uma Uberização da Medicina, onde todos (motoristas particulares, donos de carros, taxistas, etc…) se utilizam e aproveitam as facilidades da ferramenta.”
Para ele, o melhor paralelo é com as fintechs. “Com a transformação digital no setor financeiro e as fintechs, diminui-se muito a necessidade de ir a uma agência bancária ou de abrir uma conta de forma presencial. No caso da saúde, as pessoas hoje têm acesso a serviços que antes eram exclusivamente presenciais também sem a necessidade de sair de suas casas, como no caso da telemedicina, por exemplo.” O diretor parece animado. “As healthtechs, além de complementar os serviços existentes, vêm para alterar e chacoalhar o mercado. As soluções são extremamente relevantes e as melhorias, notáveis. Vai ser interessante ver como esse mercado evolui.”